Travessa guarda memória boêmia de Natal e apesar de esquecido, é símbolo da II Guerra Mundial na região portuária da cidade.
Por Ranniery Sousa

O lugar é a Ribeira, bairro histórico natalense que ainda abriga parte importante da vida cultural da cidade. Lá está o centenário Teatro Alberto Maranhão, a charmosa Casa da Ribeira, o animado Ateliê Bar, o espaço cultural Gira Dança, o Porto de Natal, os largos, bares, ruas, vielas e muitas, muitas histórias guardadas. Andando por ali, é fácil encontrar a Rua Chile e a Frei Miguelinho. Ligando as duas há uma passagem estreita de aproximadamente 45 metros, a Travessa da Quarentena. Ela ficou conhecida como beco e assim é chamada há muito tempo.
A noite no Beco da Quarentena, que hoje é silenciosa e escura, em nada lembra os tempos áureos entre as décadas de 40 e 60. Naquele tempo, o local era cenário perfeito para que os boêmios vivessem momentos animados e quentes de uma Natal que se acostumava com a efervescência do pós-guerra. Seu Jurandir Alves, dono de mercadinho na Rua Frei Miguelinho, garante que o Beco da Quarentena tinha fama internacional. “Os marinheiros chegavam aqui e já queriam ir ao Beco, depois de passar tanto tempo embarcados eles queriam relaxar, tá entendendo?”. Toda essa fama do então ponto turístico da capital, uma pequena rua como tantas outras da Ribeira, se dava por uma razão especial. Naquele endereço, moravam Ofélia, Cafufa, Maria Eunice, “Rocas-quintas” e outras mulheres cheias de carinho para dar em troca de pagamento, não muito alto, em dinheiro.
O risco iminente de contrair uma doença sexualmente transmissível faz parte da explicação do nome “Quarentena”. A pequena via já passou por muitas fases, de Rua das Donzelas, no início do século passado a local de repouso dos doentes, foi ponto comercial de bares, casas de jogos e também de prostituição.
Seu Mimi, deficiente visual e já idoso, conta que uma das mais famosas do Beco era Maria Eunice. “Ela tinha um cliente policial, com um bigodão grande, que botava medo em qualquer um. Muitos queriam ficar com ela, mas ninguém se metia a besta, por causa dele.” Já Rocas-quintas também tinha fama em toda cidade. Seu Jurandir narra que a fila para ser atendida pela moça era “grande como a fila do INSS”. “Naquele tempo, se lavavam com uma bacia, assim acocada. Depois de finalizar um serviço ela não tinha tempo nem de esperar secar e já ia atendendo outro.” O apelido da mulher que gostava de mostrar serviço era Rocas-quintas, mesmo nome da primeira linha de ônibus urbano de Natal. A moça, que na verdade se chamava Edite, atendia clientes que morassem das Rocas até as Quintas. Ambos bairros antigos de Natal.

A resposta do porquê “Quarentena” no nome do beco tem duas versões. Segundo o historiador Henrique Lucena, as mulheres que se prostituíam naquela época precisavam de um documento da Cruz Vermelha, certificando que não havia doenças sexualmente transmissíveis. “Então as mulheres que não tinham esse documento, acabavam ficando na região do Beco da Quarentena, onde esse serviço era muito mais barato, que em outras partes da cidade. Por isso o nome surgiu na perspectiva da quarentena, do afastamento dessas mulheres das atividades para ficar no Beco, fazendo programas”.
A outra versão, segundo os moradores mais antigos da Ribeira, se deve ao fato de que lá ficavam abrigados aqueles que desembarcavam em Natal com algum tipo de enfermidade. Os doentes eram isolados no local por 40 dias para tratamento. “Depois do sujeito ficar esse período lá e tomando muito caldo de cana, se tivesse ainda vivo, podia sair” garante Augusto Serrano, frequentador antigo do Sport Club de Natal, que fica na Rua Chile. O atleta garante que nunca chegou a entrar nos quartos do Beco. “Fui algumas vezes ao Arpege, mas no Beco da Quarentena eu nunca fui”.
O fato é que a vida noturna na Ribeira tem dois momentos significativos. O primeiro, antes da II Guerra Mundial, como uma região portuária, de navegantes e pescadores, que já usufruía do serviço de prostituição. “É uma população bem específica e que se utiliza do serviço como em qualquer região portuária e ribeirinha no mundo inteiro”, explica o historiador Henrique Lucena. O segundo momento é, com a chegada dos oficiais do exército brasileiro e americano, durante o conflito armado no final da década de 1930 e década de 1940. “A Ribeira passa a ter uma clientela diferenciada frequentando esse tipo de espaço a partir da II Guerra, com os militares e comerciantes do mundo inteiro que passaram a vir para nossa cidade”, afirma o pesquisador.
Com o declínio da atividade econômica que sustentava o Beco, nos fins da década de 70, outros locais se estabilizaram ou surgiram para atender a demanda de homens em busca de diversão noturna. Aí estavam o Arpege, o Cabaré de Maria Boa, o de Maria Peixoto e tantos outros.
Daquele tempo para cá, o Beco se tornou um lugar malvisto por conta dos últimos acontecimentos e ganhou até mesmo a fama de assombrado. A Ribeira ficou esquecida pelas autoridades, crimes e uso de drogas por pessoas em situação de rua marcam hoje o espaço. Além de tudo, há muito lixo acumulado, metralha e falta iluminação pública.
Atualmente, a população na Travessa se restringe a apenas dois casais e outros 3 homens, que vivem lá e já passaram dos 40 dias iniciais há bastante tempo. “Vivo aqui já faz 25 anos e gosto porque é calmo e tem silêncio. Só tem uns que usam o Beco para usar drogas, mas é tranquilo”, afirma seu José Francisco Januário. O senhor desmente qualquer possível existência de assombro no Beco, mas lembra da época em que chegaram a acontecer assassinatos. “O último que morreu aqui foi um sujeito chamado Bexó, há mais ou menos 20 anos. Eram duas da tarde e ele morreu aqui em frente”, relembra o morador.
Por essa fase mais esquecida da rua, existe gente como o dono do “Messias Placas” que quando perguntado sobre a relação com o beco, afirma rapidamente: “Mas isso aqui não tem nada a ver com o Beco da Quarentena, não. Não tem nem acesso. Eu mesmo só passo por ele e pronto.” O comerciante, que trabalha ali há 11 anos parece não gostar que seu estabelecimento tenha, além da porta que dá para a Rua Frei Miguelinho, um pequeno portão com saída para o Beco.
Revitalização
Numa tentativa de lutar pela história da via, há cerca de uma década, o Circuito Ribeira, iniciativa de produtores culturais que movimentou o bairro por muitas edições, começou um projeto idealizado pelo jornalista e produtor cultural Marcílio Amorim. “A ideia surgiu pelo medo de atravessar o Beco quando precisava ir de um lugar para o outro na Ribeira. Trabalhava, me divertia e circulava pelo bairro. Eu não consegui ficar quieto vendo o beco ser usado para entulho de lixo, consumo de drogas e outras coisas”.
A ideia de revitalizá-lo, segundo Marcílio, já estava em sua cabeça há algum tempo e foi pensada para acontecer com shows musicais e cortejos passando pelo espaço, “tentamos e conseguimos abrir os caminhos daquele Beco”. Para colocar em prática o projeto faltava o apoio de um grande evento. “E o Circuito Ribeira acreditou na nossa proposta, apoio e financiou a ideia e nos ajudou a dar o ponto de partida para um projeto que poderia ser bem mais amplo.” A iniciativa, que aconteceu em 2012, tinha planejado a transformação do local em galeria de arte a céu aberto. Mas não saiu do papel.
Na prefeitura de Natal, através das secretarias de Planejamento (SEMPLA) e Meio Ambiente e Urbanismo (SEMURB), existe atualmente um projeto de revitalização de becos e travessas, incluindo a Quarentena. Mas ainda em estudos, para alocação de recursos, sem prazo para início da licitação.
Procurada, a assessoria de imprensa da Urbana afirmou que a prefeitura faz a limpeza do local a cada 10 ou 15 dias. Como o Beco é estreito, o caminhão do lixo não consegue passar, mas os garis coletam os resíduos e os veículos da Companhia levam o material.
E assim, ainda esquecido e sem preservar sua história, o Beco da Quarentena e a própria Ribeira seguem carregando grande parte da memória da nossa capital sem, no entanto, receber a devida importância dos gestores e da própria população que já não frequenta o bairro histórico de Natal.
A Rua Chile e o Beco da Quarentena, estão abandonados há muito tempo!
Isso não é cultura. É pra ser esquecido. Prostituição e libertinagem. O ideal era fechar tal beco…
Estado sem incentivo a história, triste andar no centro de Assu,a Ribeira bela,e tantos outros históricos lugares nossos sem nenhuma preservação.Triste…..