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Análise histórica refuta ideia de que ciência e religião são ramos inimigos

Foto: Andreas Solaro – 24.dez.2016/AFP

Em 1966, pouco mais de 50 anos atrás, o respeitado antropólogo canadense Anthony Wallace previu com confiança a morte global da religião devido ao avanço da ciência: “A crença em poderes sobrenaturais está fadada a acabar em todo o mundo, graças à crescente adequação e difusão do conhecimento científico”.

A visão de Wallace não era heterodoxa. Pelo contrário, as ciências sociais modernas, que se desenvolveram na Europa ocidental do século 19, tomaram sua própria experiência histórica de secularização e a viram como modelo universal. Uma premissa era adotada pelas ciências sociais, às vezes supondo e outras vezes prevendo que todas as culturas acabariam por convergir em algo semelhante à democracia secular, ocidental e liberal. Então aconteceu algo mais próximo do contrário disso.

Não apenas o secularismo não continuou a avançar globalmente, como também países tão diversos quanto Irã, Índia, Argélia e Turquia viram seus governos seculares serem substituídos por governos religiosos ou assistiram à ascensão de influentes movimentos nacionalistas religiosos. A secularização, conforme foi prevista pelas ciências sociais, fracassou.

É claro que esse fracasso não foi absoluto. A crença e a prática religiosa continuam em declínio em muitos países ocidentais. Os dados mais recentes de recenseamento realizado na Austrália, por exemplo, indicam que 30% da população se identifica como não tendo religião, e essa porcentagem vem crescendo. Pesquisas internacionais confirmam níveis comparativamente baixos de engajamento religioso na Europa ocidental e na Australásia. Mesmo nos Estados Unidos, há muito tempo motivo de constrangimento para a tese da secularização, a descrença está em alta.

A porcentagem de ateus nos EUA chegou hoje ao pico (se é que “pico” é a palavra indicada) de cerca de 3%. Mesmo assim, globalmente falando, o número total de pessoas que se consideram religiosas permanece alto, e as tendências demográficas sugerem que o padrão global para o futuro imediato será de crescimento da religião. Mas essa não é a única falha da tese da secularização.

AVANÇO DA CIÊNCIA

Cientistas, intelectuais e cientistas sociais esperavam que o avanço da ciência moderna incentivaria a secularização –que a ciência seria uma força da secularização. Mas isso simplesmente não vem acontecendo. As características principais que as sociedades em que a religião continua forte têm em comum estão ligadas menos à ciência do que a sentimentos de segurança existencial e proteção contra algumas das incertezas fundamentais da vida, sob a forma de bens públicos.

Uma rede de seguridade social pode estar correlacionada a avanços científicos, mas apenas de maneira fraca, e, mais uma vez, o caso dos Estados Unidos é instrutivo. Os EUA podem ser descritos como a sociedade científica e tecnologicamente mais avançada do mundo, mas, ao mesmo tempo, é a mais religiosa das sociedades ocidentais. Como concluiu o sociólogo britânico David Martin em “The Future of Christianity” (o futuro do cristianismo, 2011), “não existe uma relação consistente entre o grau de avanço científico e um perfil reduzido de influência de crenças e práticas religiosas”.

A história da ciência e da secularização torna-se ainda mais intrigante quando refletimos sobre as sociedades em que ocorreram reações importantes contra agendas secularistas. O primeiro premiê da Índia, Jawaharlal Nehru (1889-1964), defendeu ideais seculares e científicos e incluiu a educação científica no projeto de modernização do país. Nehru acreditava que as visões hindus de um passado védico e os sonhos muçulmanos de uma teocracia islâmica sucumbiriam diante do avanço histórico inexorável da secularização. “O tempo avança apenas em mão única”, declarou. Mas, como atesta a subsequente ascensão dos fundamentalismos hindu e islâmico, Nehru se equivocou. Além disso, a vinculação da ciência com uma agenda de secularização teve efeito contrário ao desejado; uma das baixas colaterais da resistência ao secularismo foi a ciência.

O caso da Turquia é ainda mais claro. Como a maioria dos nacionalistas pioneiros, Mustafá Kemal Ataturk, o fundador da república turca, foi um secularista engajado. Ele acreditava que a ciência estava destinada a tomar o lugar da religião. Para garantir que a Turquia se posicionasse do lado certo da história, ele deu à ciência, em especial à biologia evolutiva, uma posição central no sistema de ensino público da república turca nascente.

O resultado disso foi que a evolução passou a ser associada a todo o programa político de Ataturk, incluindo o secularismo. Procurando contrariar os ideais secularistas dos fundadores da república, os partidos islâmicos turcos também vêm atacando o ensino do evolucionismo. Para eles, a teoria da evolução está ligada ao materialismo secular. Esse sentimento culminou em junho deste ano com a decisão de tirar o ensino da evolução do currículo colegial. Mais uma vez, a ciência virou vítima da culpa por associação.

Os Estados Unidos representam um contexto cultural diferente, onde pode parecer que a questão crucial é um conflito entre as leituras literais do Livro de Gênesis e aspectos chaves da história da evolução. Na realidade, porém, boa parte do discurso criacionista trata de valores morais. Também no caso dos EUA, vemos o antievolucionismo sendo motivado, pelo menos em parte, pela ideia de que a teoria da evolução é um pretexto para a promoção do materialismo secular e seus valores. Como acontece na Índia e na Turquia, o secularismo está, na realidade, prejudicando a ciência.

Para resumir, a secularização global não é inevitável, e, quando acontece, não é causada pela ciência. Além disso, quando se procura usar a ciência para promover o secularismo, os resultados podem prejudicar a ciência. A tese de que “a ciência causa secularização” não passa no teste empírico, e recrutar a ciência como instrumento de secularização é uma estratégia que deixa a desejar. A combinação de ciência e secularização é tão inapta que levanta a pergunta de por que alguém chegou a pensar que não fosse.

Historicamente, duas fontes relacionadas promoveram a ideia de que a ciência tomaria o lugar da religião. Primeiro, as noções de progresso da história, em especial ligadas ao filósofo francês Auguste Comte, defendiam uma teoria segundo a qual as sociedades passam por três estágios –religioso, metafísico e científico (ou “positivo”). Comte cunhou o termo “sociologia” e queria reduzir a influência social da religião, substituindo-a por uma nova ciência da sociedade. A influência de Comte se estendeu aos “jovens turcos” e a Kemal Ataturk.

Também no século 19 surgiu o “modelo conflitante” de ciência e religião. Era a ideia de que a história pode ser entendida em termos de um “conflito entre duas épocas na evolução do pensamento humano –a teológica e a científica”. Essa descrição vem da influente obra “A History of the Warfare of Science with Theology in Christendom” (uma história da guerra da ciência com a teologia na cristandade, 1896), de Andrew Dickson White, cujo título resume bem a teoria geral do autor.

A obra de White, assim como o anterior “History of the Conflict Between Religion and Science” (história do conflito entre religião e ciência, 1874), de John William Draper, firmou a tese do conflito como o modo padrão de encarar as relações históricas entre ciência e religião. As duas obras foram traduzidas para muitos idiomas. O livro de Draper teve mais de 50 tiragens apenas nos Estados Unidos, foi convertido para 20 línguas e virou best-seller na fase final do Império Otomano, onde contribuiu para a visão de Ataturk de que o progresso exigia que a ciência fosse ganhando ascendência sobre a religião.

APOIO

Hoje as pessoas sentem menos certeza de que a história avança rumo a um destino único, passando por uma série determinada de etapas. E, apesar da persistência popular da ideia de um conflito duradouro entre ciência e religião, a maioria dos historiadores da ciência não defende essa visão.

Colisões renomadas, como o caso de Galileu, foram determinadas pela política e pelas personalidades envolvidas, não apenas pela ciência e pela religião. Darwin teve defensores religiosos importantes e detratores científicos, além de detratores religiosos e defensores científicos. Muitas outras supostas instâncias de conflito entre ciência e religião foram expostas como sendo pura invenção.

Na realidade, contrariando o conflito, a norma histórica muitas vezes tem sido de apoio mútuo entre ciência e religião. Em seus anos formativos, no século 17, a ciência moderna dependeu da legitimação religiosa. Nos séculos 18 e 19, a teologia natural ajudou a popularizar a ciência.

O modelo de conflito ciência-religião nos deu uma visão equivocada do passado e, quando somado a expectativas de secularização, levou a uma visão falha do futuro. A teoria da secularização fracassou como descrição e como previsão. A pergunta real é por que continuamos a nos deparar com proponentes do conflito entre ciência e religião.

Muitos são cientistas renomados. Seria supérfluo repetir as reflexões de Richard Dawkins sobre esse tema, mas ele está longe de ser uma voz solitária. Stephen Hawking acha que “a ciência vai sair ganhando porque ela funciona”; Sam Harris declarou que “a ciência precisa destruir a religião”; Stephen Weimberg pensa que a ciência enfraqueceu as certezas religiosas; Colin Blakemore prevê que, com o tempo, a ciência acabará tornando a religião desnecessária. As evidências históricas não fundamentam essas alegações. Na realidade, sugerem que elas são equivocadas.

Então por que elas persistem? As respostas são políticas. Deixando de lado qualquer apreço remanescente por visões oitocentistas ultrapassadas da história, precisamos pensar no medo do fundamentalismo islâmico, na rejeição ao criacionismo, na aversão às alianças entre a direita religiosa e a negação da mudança climática e nos temores de erosão da autoridade científica. Podemos nos solidarizar com essas preocupações, mas não há como disfarçar o fato de que elas nascem de uma intrusão indesejável de compromissos normativos na discussão.

O pensamento fantasioso, pautado pelo que se deseja –esperar que a ciência seja vitoriosa sobre a religião– não substitui uma avaliação sóbria e refletida das realidades atuais. Levar essa defesa da causa da ciência adiante provavelmente terá efeito oposto ao pretendido.

A religião não vai desaparecer no futuro próximo, e a ciência não vai destruí-la. Na realidade, é a ciência que sofre ameaças crescentes à sua autoridade e legitimidade social. Em vista disso, a ciência precisa de todos os aliados possíveis. Seus defensores fariam bem em parar de retratar a religião como sua inimiga ou de insistir que o único caminho para um futuro seguro está no casamento entre ciência e secularismo.

PETER HARRISON é diretor do Instituto de Estudos Avançados de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de Queensland. Seu livro mais recente é “The Territories of Science and Religion” (2015), e sua coletânea editada “Narratives of Secularization” (2017) será publicada neste ano.

Tradução de CLARA ALLAIN

Folha de São Paulo

 

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