Mãe Merinha foi bem rápida, amarrou um pano branco na roupa e colocou alguns colares fios-de-conta coloridos no pescoço. ‘‘O mais triste disso tudo é saber que eles não param’’, disse, enquanto prendia um tecido também branco na cabeça. Estava pronta, com sua vestimenta de mãe-de-santo. Sinalizou que poderia começar a entrevista e se apresentou: ‘‘Sou Mãe Merinha de Oxum, fui iniciada no Candomblé há 36 anos, sou filha de Mima de Oxossi, do Ilê Axé Obá Ketu’’. Há um ano e meio, Rosimere Lucia dos Santos abriu um terreiro de Candomblé em Belford Roxo, município do Rio de Janeiro, na Baixada Fluminense, onde também começou um trabalho social com crianças da região. No dia 27 de setembro, quarta-feira, completou 51 anos e, naquele mesmo dia, seu terreiro foi invadido e incendiado.
Os vizinhos, quando perceberam as chamas, chamaram o irmão de Mãe Merinha, que mora perto, para ajudar a apagar o fogo. O incêndio foi controlado a tempo de não afetar a edificação principal, mas, no dia seguinte, Mãe Merinha percebeu que colocaram fogo bem na casa do meio, onde ficavam os donativos, roupas de santo e os orixás. Os criminosos furtaram também uma TV, celular e rádio. O Registro de Ocorrência foi feito uma semana depois, já na segunda tentativa: ‘‘A delegacia estava muito cheia, fiquei umas três horas lá, tava muito enfraquecida, chocada com tudo, fui buscando força, aí retornei na quinta-feira’’.
Queimaram também livros sobre religiões de matriz africana e as fotos da história da família no Candomblé. ‘‘O que mais me entristece é o material de trabalho e as fotografias. Eu tenho toda uma história de santo, de quando era dirigido por minha mãe’’. Mãe Merinha é descendente de negros e indígenas, e a religião veio pela avó materna que foi para o Rio de Janeiro fugindo do marido violento, no Espírito Santo. Lavadeira, a avó conseguiu comprar um terreno em Belford Roxo e destinou parte para o orixá da filha. ‘Tinha até algumas fotos da minha mãe com trouxa na cabeça quando elas chegaram no município de Belford Roxo’’, relembra. ‘‘Levei tudo que eu tinha no decorrer desses anos para esse local, é toda uma história de vida do sagrado’’.
Mãe Merinha segura uma das fotos que sobrou do incêndio. Dado Gadieri e Pilar OlivaresHilaea Media
Mãe Merinha é uma das vítimas mais recentes da violência contra adeptos das religiões de matriz africana no Estado do Rio de Janeiro. De acordo com os dados do Centro de Promoção da Liberdade Religiosa e Direitos Humanos (Ceplir), das 52 denúncias de intolerância religiosa ao Ceplir — de dezembro de 2016 a agosto de 2017 —, 34 foram de pessoas do Candomblé, Umbanda e outras denominações de religiões de matriz africana no Estado do Rio.
Em cinco anos, as denúncias de discriminação por motivo religioso no Brasil cresceram 4960%. Foram de 15, em 2011, para 759, em 2016, de acordo com os dados do Disque 100, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH). Em 2016, 69 eram candomblecistas (9,09%), 74 eram umbandistas (9,75%) e 33 são descritas como “religião de matriz africana” (4,35%), totalizando 23,19%.
Segundo relatório da Pew Foundation, o país deixou de ser um dos países mais populosos com menor taxa de Hostilidade Social por motivações religiosas, em 2007, para um dos países com alta taxa em 2014, passando da 2ª posição para a 9ª neste período.
Em agosto e setembro deste ano, uma nova onda de ataques a terreiros de Candomblé e Umbanda na Baixada Fluminense comprovou que os crimes de ódio por motivo religioso estão crescendo no Estado que tem, pela primeira vez, um bispo evangélico governando a sua capital — em janeiro, Marcelo Crivella (PRB), bispo de Igreja Universal do Reino de Deus, assumiu a prefeitura do Rio de Janeiro.
Em resposta à violência, a Secretaria de Estado de Direitos Humanos (SEDHMI) lançou o Disque Combate ao Preconceito para facilitar as denúncias.
Nos meses de agosto e outubro foram feitas 43 denúncias: uma de um espírita kardecista, uma de um evangélico, dois islâmicos e 39 umbandistas e candomblecistas, representando 90% do total. Foram seis tipos de violações identificadas, entre eles invasão/atentado a instituições religiosas (11), discriminação/difamação (10), agressão física (6), incitação ao ódio (6), agressão verbal (6), ameaça (4).
Inquisição do tráfico na Baixada
Dentre as denúncias contra religiosos de matriz africana, 12 ocorreram na Baixada Fluminense. A região reúne 13 municípios do Rio de Janeiro e abriga ao menos 274 terreiros, do total de 847 no Estado, de acordo com a pesquisa Mapeamento das Casas de Religiões de Matrizes Africanas, realizada pela PUC-Rio com o apoio da Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR/PR), entre 2008 e 2011.
A SEDHMI recebeu quatro denúncias de ataques a terreiros realizados por traficantes de agosto a outubro, três delas de ocorrências na Baixada Fluminense — duas em Nova Iguaçu e uma em Itaguaí. Segundo a secretaria, as quatro vítimas informaram que, por ordem da facção criminosa, é proibida a prática de religiões de matriz africana na área dominada pela facção. Todas as pessoas que denunciam casos de intolerância religiosa são orientadas a fazer o registro na delegacia da região, mas algumas vítimas não o fazem por medo.
Em setembro, o terreiro da mãe de santo Carmen de Oxum foi atacado em Nova Iguaçu. O traficante, que ainda registrou o crime com a câmera de um celular, dá ordens para destruir os objetos sacralizados: ‘‘quebra tudo, apaga as velas, pelo sangue de Jesus tem poder… Todo mal tem que ser desfeito em nome de Jesus’’. Segundo o diretor-geral da Polícia da Baixada Fluminense, Sérgio Caldas, o caso está sendo investigado pela 58ª DP e já foram identificados, como executores, dois traficantes do Terceiro Comando Puro, facção criminosa conhecida por ameaçar candomblecistas e umbandistas. ‘‘Essa pessoa veio de uma outra comunidade para pressionar os terreiros de candomblé’’, disse Caldas à Pública, acrescentando que as condições “não são favoráveis” para a investigação. “Quando ocorre em comunidade conflagrada, a vítima fica com medo de se expor’’.
Os indiciados deste caso serão penalizados pela Lei 7.716, de 1989, conhecida como “Lei Caó’’, que determina a punição para os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, como crime inafiançável e imprescritível. A pena é de dois a cinco anos de reclusão.
O babalaô Ivanir dos Santos, fundador da Caminhada em Defesa da Liberdade Religiosa e porta-voz da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa, diz que as primeiras ações de destruição de terreiros por traficantes aconteceram na década de 1990, no Morro do Urubu, em Pilares, Zona Norte do Rio. Depois, outros casos ocorreram no Morro do Dendê (localizado na Ilha do Governador), no Lins de Vasconcelos e na Cidade Alta. “É um fenômeno compreensível. Toda religião que cresce vai influenciar algumas esferas sociais’’, diz. Ivanir acredita que a presença de igrejas evangélicas nos presídios do Rio é um fator de influência para o surgimento do que chama de “tráfico evangelizado’’. ‘‘O cara tá lá preso, vira evangélico e vai sair por bom comportamento, isso diminui a pena do sujeito… Quando sai da prisão, nem todo mundo muda de vida”, diz.
As igrejas evangélicas devem se tornar ainda mais presentes nos presídios fluminenses. Em fevereiro, a Igreja Universal do Reino de Deus firmou acordo com o Governo do Estado para a construção de templos em unidades penitenciárias, custeados pela instituição religiosa. O acordo permite que a Universal construa ou reforme templos ecumênicos nas 51 unidades prisionais do Estado, dependendo de autorização do diretor da unidade. Até o momento, graças ao convênio, 15 templos foram inaugurados ou reformados, nos Complexos de Gericinó, Campos, Resende e Água Santa.
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