A ‘cidadã de bem’ brasileira, aquela que diz pagar impostos, gerar empregos e sempre lutar contra a corrupção não quer estragar a unha para pegar uma criança de cinco anos no colo e dizer “sua mamãe já vem, ela deu uma descidinha para levar o cachorro para fazer xixi, fica calmo, bebê”. Ah, mas não é qualquer criança, né, é ‘o filho da empregada’, esse menino que pela sua condição devia “saber qual é o seu lugar”: ele é alguém que não pode reclamar, cujos incômodos não podem ser os mesmos que os dos Enzos e Valentinas, filhos da patroa. E como ele teve de ir trabalhar com a mãe, já que todas as creches e escolas estão fechadas, tem que ficar quietinho no seu canto, entender seu papel invisível. “Toda vez que ele vem fica aqui me atrapalhando!”, sempre reclama a Sinhá.
Mas se todos têm de ficar em isolamento para evitar a contaminação pela Covid-19, por que ‘o filho da empregada’ não está em casa com seus pais, seguro, assistindo à televisão ou brincando com seus irmãos? Porque a mãe desse menino foi obrigada a trabalhar, oras, os patrões não quiseram ficar ‘desamparados’, já pensou ter de lavar a própria cueca, limpar a própria privada, fazer o próprio almoço? Não, não dá, a Casa-Grande do século XXI não aguenta. “Empregada doméstica é serviço essencial”, disse a dona da casa à manicure, que também estava na casa da cliente mesmo com medo do coronavírus (ela continua fazendo unhas em domicílio no meio de um surto epidêmico porque não conseguiu o auxílio emergencial do governo, ao contrário de 3,9 milhões de pessoas da classe A e B, pertencentes ao mesmo círculo social da madame, que correram para ‘morder’ os 600 reais do ‘coronavoucher’).
“Esse moleque não tem nenhuma educação!”, comenta quando o menino começa a chorar procurando pela mãe, não levando em conta que todas as crianças de cinco anos agem assim, como crianças, principalmente quando estão em um lugar em que não se sentem acolhidas. Talvez ela não saiba muito bem como são os pequenos nessa idade, seus filhos passam mais tempo com a babá do que com ela. Mas para provar para a manicure que ela é, sim, uma ‘cidadã de bem’, começa logo a elencar tudo o que faz pela ‘família da empregada’. Na época do Natal, junta todos os brinquedos (quebrados) que os filhos não gostam mais, as roupas (furadas) que não servem mais e doa. Nem sempre eles levam aqueles montes de saco que ela junta, “acredita? Tem uns pobres que têm o rei na barriga, ficam fazendo cara feia sendo que eu só dou coisa boa!”
Só que o ‘filho da empregada’ é uma criança como todas as outras, que pode ter sentido que sua presença ali não era bem-vinda. E continuou a chorar, pedindo pela mãe que teve de descer para passear com o cachorro da família deixando ele para trás, porque estamos em uma pandemia, lembra? A mãe do pequeno Miguel (sim, esse era o nome dele) acreditou que a tal patroa iria dedicar ao seu filho um pouco do cuidado que ela dispensava todos os dias aos filhos dela. Dar uma olhadinha no menino, dedicar umas palavrinhas de conforto, talvez até um abraço para acalmá-lo se fosse o caso, quem sabe? A mãe de Miguel, a Mirtes, costumava medir as pessoas pela própria régua, um erro, sabemos. Ela é uma mulher gigante. Já a patroa da mãe de Miguel é uma pessoa minúscula.
A madame decidiu que não podia acolher Miguel porque talvez estragasse seu esmalte. Mas decidiu resolver as coisas de outro jeito mais prático. Abriu a porta do apartamento e deixou o menino de cinco anos procurar sozinho a própria mãe, mesmo sendo pequeno demais para isso, mesmo correndo o risco de sair sem máscara e se contaminar. Os ‘filhos da empregada’ não têm essas frescuras, não têm medo de nada, “moram na favela, oras”. O importante é garantir que ele use o elevador de serviço, sabe como é. As câmeras de segurança do edifício mostram a Sinhá apertando o botão que fez Miguel alcançar a parte superior do prédio, mais especificamente o nono andar, onde encontrou o caminho da morte. O resultado dessa crueldade está em todos os jornais, que inicialmente não estamparam o nome da patroa, ausência notada por nós e também por Mirtes, que chora a ausência do filho, buraco no peito com o qual terá de conviver por toda sua vida.
Agora sabemos que a patroa também é ‘primeira-dama’, uma ‘Corte-Real’ (e fiquei chocada com o simbolismo desse sobrenome). Ela foi presa em flagrante, mas pagou fiança de R$20 mil e responderá em liberdade por homicídio culposo, quando não há intenção de matar. Ela ‘só’ quis se livrar dele, era apenas o ‘filho da empregada’ que não parava de chorar, oras. Por aqui os filhos da favela e da periferia valem muito pouco, são todos pretos e “como é que pretos, pobres e mulatos, os quase brancos, quase pretos de tão pobres são tratados?”, pergunta Caetano, em “Haiti”. São tratados como Miguel. Como João Pedro. Como Ágatha. Daqui a pouco todo mundo esquece. E daí se abre espaço para a morte do próximo. E de outro. E de mais outro.
TEXTO DE RITA LISAUSKAS / E + ESTADÃO
Pergunto se Caetano Veloso algum dia, pelo menos em sonho, visitou o Haiti. Acho que não. É baiano, mas salvo engano, mora no Rio de Janeiro, zona sul, lugar de "burguês". Texto de colunista petralha hipócrita. Desde que o mundo é mundo que existe desigualdade e sempre existirá. O que faz a diferença é a filantropia. Será que esses "intelectuais" do jornalismo sabem o que é essa palavra? Se \a conhecem, será que a praticam?
Texto cheio de revolta,se aproveita do momento pra destilar seu ódio o próximo.a moça errou e tem que ser responsabilizada,agora chamar de monstro como estao chamando não e correto.ela tem filhos, mãe,irmão….
Perfeito comentário da realidade sobre a diferença de classes neste Brasil miscegenado tão colorido qto nossa fauna brasileira lamentável!!Belo texto dos senhores x escravos, sim a escravidão continua,onde as leis persistem em ser aplicadas apenas quem tem muita grana. Parabéns mais uma vez!!!
E esses que fazem um texto bonito referindo-se a situação e aproveitam pra fazer um pouco de política e lacrar em cima da desgraça alheia? Hipócritas.
Esse texto é muito reflexivo principalmente no tocante a quem tem filho nessa idade como a do menino que foi "assassinado" pela patroa. Nada poderá reparar a família do garoto, a vida não tem preço!
Muito bom o texto. Eu só lamento que lê-se os textos, enche-se as redes sociais de solidariedade e tudo continua como "dantes no castelo de abrantes"…As leis são feitas pela " Corte-Real" do Congresso. A maioria dos brasileiros continuam sentados no chão abaixo da mesa dos patrões esperando as migalhas caírem dos banquetes da "Corte-Real"….. como no famoso quadro de Debret.
É a cara cagada e cuspida do cidadão de bem, da elite e de uns perrapados que tb se acham desse grupo, da família tradicional brasileira, cristã e dos bons costumes. Aquela q quer ter uma arma na mão. Na verdade são hipócritas, egoistas e se aproveitam das necessidades de algumas pessoas humildes. São parasitas.
Alguns abaixo irão dizer: E daí? É muito mi mi mi!
Como sociedade nós somos um Lixo. A nosss indignidade infelizmente é abafada pelo vômito diário dos imbecis que infestaram esse país.
Lindo texto!!
Reflexão Boa é verdade.
Eu pergunto, a senhora que escreveu tem empregado ou não? onde lava sua roupa ? quem vem entregar seus pedidos ? ela faz tudo e não usa os serviços de ninguém? Ela não teve babá?
Essa turma do vinho e das mordomias são bons de escrita e péssimos em ações concretas.
Relevante nisso tudo também é saber como um prefeito de salário que no máximo deve ser de 20 mil reais tem esse patrimônio?
Parabéns pela reflexão, mostra exatamente o significado em todos os gêneros de uma Desigualdade Social.