Cultura

Crise da Rouanet gera ‘ameaça de apagão cultural’, diz ministro

Marcelo-CaleroFOTO: ANDRE COELHO / Agência O Globo

Desde que Marcelo Calero assumiu o ministério da Cultura (MinC), em 24 de maio, a pasta não sai do noticiário político. O ex-secretário de Cultura do Rio exonerou 81 funcionários que ocupavam cargos comissionados, disse que estava “desaparelhando” o MinC, trocou acusações com a gestão anterior, viu equipamentos culturais ocupados por manifestantes — e ordenou a reintegração de posse deles. Enquanto isso, anunciou o pagamento de dívidas, lançou um programa para valorizar o funcionário público, criou novas secretarias, mudando a estrutura da pasta, e saiu em defesa da Lei Rouanet, alvo de recentes denúncias de irregularidades e de uma CPI criada pela Câmara dos Deputados. Calero diz que a CPI não interessa ao ministério nem ao governo e conta que já falou aos deputados sobre sua preocupação em relação ao que chama de “demonização” do principal meio de fomento à produção cultural no país:

— O que me preocupa é que hoje as empresas que usam a lei já estão combalidas com a crise econômica. Então, naturalmente já estariam mais ausentes do mecanismo. E muitas delas nem poderão usar a Rouanet porque suas regras de compliance proíbem que elas se valham de mecanismos sob escrutínio legal. Já externei isso aos deputados. (Com a crise da Rouanet), temo que a gente tenha um apagão cultural no ano que vem. E isso é muito grave.

Na quarta-feira, horas após o impeachment de Dilma Rousseff e a posse de Michel Temer na presidência, e na véspera de completar 100 dias no governo, Calero concedeu a seguinte entrevista em seu gabinete. E comentou polêmicas.

Em artigo no GLOBO, o senhor escreveu que ia apresentar ao presidente o programa Brasil é Cultura, com 15 linhas pragmáticas. O que é esse projeto? Já foi apresentado?

Já. É um plano com todas as linhas de ação do ministério, iniciativas, prazos. Agora estamos traduzindo isso em números concretos à luz do orçamento, enviado ao Congresso. Não posso anunciar todas, mas uma dessas iniciativas é o projeto Bibliotecas do Amanhã, que começou no Rio, e no plano federal terá três pilares: reformas físicas de bibliotecas públicas, aliadas a novos projetos educativos; um novo mecanismo de auxílio a bibliotecas comunitárias; e criação de bibliotecas no programa Minha Casa, Minha Vida, em parceria com os ministérios das Cidades e da Educação. Também temos o Ações Locais, iniciado no Rio, antes da minha gestão, que vamos tornar nacional, investindo em iniciativas culturais importantes, mas que não estejam atreladas a uma instituição ou a um grupo formalmente constituído. A ideia é reduzir a burocracia, aumentar a capilaridade e estimular, por exemplo, ações culturais em periferias do país. Também criamos a Secretaria de Infraestrutura Cultural, porque uma das maiores demandas que a gente tem é de infraestrutura mesmo: teatros, centros culturais e museus, por exemplo, que precisam de reformas e equipamentos. Um teatro bem equipado não é só um lugar de fruição, mas também de fomento à produção local, estimulando a criação e produção. Mas não vamos financiar novas construções, para isso há o programa dos Centros de Artes e Esportes Unificados (CEUs), que a gente vai manter, só estamos estudando a meta para 2017.

O que acha do projeto Procultura, que está no Senado, e chegou a ser apontado como alternativa à Rouanet?

A gente tem que ter bastante parcimônia ao analisar esse projeto. Já conversei muito com o senador Roberto Rocha (PSB-MA), relator do Procultura. E estou ouvindo mais opiniões. O projeto traz inovações importantes, mas não desqualifica a Lei Rouanet.

Sobre a Rouanet, existe um projeto concreto de reforma?

Ainda não. Tenho no horizonte algo em torno de seis meses. Estamos ouvindo vários lados antes de dizer qual é o nosso entendimento. Mas uma das coisas que me parecem muito importantes é permitir que empresas de lucro presumido possam usar a lei. Também pensamos em atrair pessoas físicas e em trabalhar mais com mecanismos como o endowment (espécie de doação muito comum nos Estados Unidos). Há muitas propostas em discussão, inclusive para fomentar produções independentes, artistas cooperativados. Deles depende a manutenção da vanguarda estética e artística.

Com toda a crise, de onde sairá dinheiro para antigos e novos projetos do MinC?

Chegamos aqui com R$ 1 bilhão inscrito em restos a pagar. Recebemos um aporte de R$ 237 milhões do presidente. E estamos renegociando dívidas à medida que formos pagando. Hoje a dívida está em torno de R$ 400 milhões. Trabalhamos para reduzir outras despesas e crescer o orçamento do ministério em 2017. Fomos autorizados a mandar proposta de R$ 733 milhões (para despesas não fixas). O que é um ganho enorme (neste ano, o valor foi de R$ 604 milhões, mas caiu para R$ 430 milhões após o contingenciamento). E vamos rever metas. A meta do Plano Nacional de Cultura, por exemplo, era chegar a 2020 com 15 mil pontos de cultura. Essa não é uma meta exequível. Deveria ser entre 6.500 e 8 mil. Queremos rever esses planos diante da nova realidade que se impôs ao país nos últimos anos.

Falando em reunião, o senhor disse que conversaria com deputados sobre a CPI da Lei Rouanet. Conseguiu?

Sim. E expressei minhas preocupações. Já disse que fico muito preocupado com a demonização da lei e com a criminalização do artista. O que me preocupa é que hoje as empresas que usam a lei já estão combalidas com a crise econômica. Então, naturalmente já estariam mais ausentes do mecanismo. E muitas delas nem poderão usar a Rouanet porque suas regras de compliance proíbem que elas se valham de mecanismos sob escrutínio legal. (Com a crise da Rouanet) temo que a gente tenha um apagão cultural no ano que vem. E isso é muito grave. O que a gente está tentando é ver se a CPI pode se circunscrever a alguns casos específicos e ter uma duração determinada. Até porque tememos que toda a estrutura do ministério fique por conta de atender a solicitações da CPI. Estamos buscando o melhor desfecho possível. Claro que o melhor era não haver CPI. Mas ela foi deferida pelo então presidente da Câmara Waldir Maranhão (PP-MA). O ministério e o governo não são favoráveis à CPI, não achamos que seja o melhor fórum pra isso. Acho até que a operação Boca Livre prova que a CPI é desnecessária, porque os órgãos de controle estão funcionando.

Mas nesta semana mesmo a “Folha de S.Paulo” divulgou o caso do musical “Maysa”, que apresentou nota falsa de R$ 2,5 milhões de ar-condicionado.

O MinC já tinha alertado para o problema. Achou estranho.

Mas recebeu notas justificando o valor que eram falsas.

Quando a gente recebe esses documentos, há uma presunção de idoneidade. Depois é analisada a prestação de contas. Se você falar com os artistas, eles vão dizer que há excesso de pedidos de documentos, que eles têm dificuldade de atender. Sempre haverá momentos em que a fiscalização não terá sido bem-sucedida. É por isso que há órgãos de controle fora do ministério, há a imprensa, que também tem esse papel. E casos assim servem para a gente trabalhar no aprimoramento dos mecanismos de controle. Estamos trabalhando no fluxo de informações, na informatização do material que chega, para que tudo passe a ser eletrônico. O que me preocupa é não se levar em conta o fato de a lei hoje patrocinar mais de 3 mil projetos, e contar-se nos dedos aqueles em que se descobriu alguma irregularidade.

Quando o senhor assumiu, disse que queria diálogo, mas que os ânimos estavam acirrados para isso. E não melhoraram. Como dialogar com a classe se parte dela diz não reconhecer o governo?

Não sei se os ânimos estão mais acirrados. E eu disse que queria diálogo, mas que entendia que o momento era delicado por conta da exacerbação política. O discurso não mudou. As posições políticas às vezes continuam exacerbadas, mas é preciso entender que há um governo que foi fruto de um processo constitucional, e há um ministro da Cultura que está disposto a dialogar com quem quer que seja para a construção de políticas públicas consistentes. Mas só dialogo com quem quer dialogar.

Organizações como o GAP (Grupo de Articulação Parlamentar Pró-Música) e o Procure Saber estão apreensivas em relação à posição do MinC sobre direitos autorais. O que pensa da fiscalização sobre o Ecad, por exemplo?

Está se fazendo muita espuma para pouco chope. Entendo que eles viveram um momento mais confortável porque o diretor de Direito Intelectual (Marcos Souza, exonerado mês passado) era próximo a eles. Mas nós temos hoje no ministério dois especialistas em direito intelectual — o secretário de Economia da Cultura, Claudio Lins de Vasconcelos, e o diretor de Direito Intelectual, Rodolfo Tamanaha.

Mas vai se rediscutir fiscalização sobre o Ecad?

É claro que não. Mas a gente quer ver direitos intelectuais para além da questão de Ecad. Queremos trabalhar a cultura como um eixo estratégico de desenvolvimento. E isso perpassa questões de direito intelectual. Todos os lados serão ouvidos sempre que o diálogo se der de maneira respeitosa. Recebi mensagens que não pareceram respeitosas. E isso não permito.

O senhor disse que não pediria reintegração do Palácio Capanema, ocupado por manifestantes contrários ao governo. Depois mandou desocupar. Por que mudou de ideia?

A gente dizia que não pediria reintegração na medida em que as manifestações obedecessem o Estado democrático, o que não aconteceu. Houve denúncias de drogas, assédio a servidores, danos ao patrimônio. É claro que o movimento que estava lá vai dizer o contrário. Corre inclusive na Polícia Federal uma investigação. Além disso tudo, havia um atraso na obra do Capanema por conta das pessoas ali.

E a Biblioteca Nacional?

Vai ser toda reformada até o fim de 2018. Nossa dificuldade é em relação aos projetos. Foram contratados vários em parceria com a FGV. Alguns não tiveram chancela do Iphan. Vamos botar a licitação na rua até meados de 2017.

O que pensa do projeto da Política Nacional da Leitura e Escrita, que está no Senado?

Isso chegou a mim há pouco tempo e ainda não tive tempo de refletir adequadamente. Mas é uma área prioritária.

Mas, se é prioridade, não deveria estar sendo discutido?

Parece muito tempo, mas três meses é muito pouco. A gente está recrutando neste momento o novo responsável pelo Departamento de Livro, Leitura e Biblioteca e o novo titular do Plano Nacional do Livro e Leitura.

O MinC tem um dos piores planos de carreira para o funcionalismo. Como melhorar?

O primeiro passo foi o programa de valorização do servidor. É traumático, claro, colocar 81 pessoas na rua, mas a gente sabe que elas nem deveriam estar ali. Eram de fora dos quadros do MinC. Sobre a Cinemateca, houve um erro (funcionários de carreira foram exonerados e depois reintegrados). Mas oferecemos 50 vagas a funcionários do MinC. E 43 foram preenchidas.

O senhor disse que quer valorizar a Funarte? Como?

Vamos recomeçar o Plano Nacional das Artes, que nem ouviu os servidores da Funarte. Alguns setores, como o teatro, também não se sentiram contemplados. A ideia é refundar a Funarte. Estamos estudando vários modelos para dotá-la de fontes de financiamento perene, como um fundo a exemplo do FSA (Fundo Setorial do Audiovisual).

Cujo dinheiro viria de…?

Várias fontes. Uma lotérica que a gente está discutindo com a Caixa, por exemplo. O próprio Fundo Nacional de Cultura pode ter parte para as artes. Já pensei até numa taxação de cigarro. E incluímos a Funarte para receber parte dos recursos caso o projeto de lei que quer legalizar o jogo no país seja aprovado.

Vai mesmo ser Autoridade Pública Olímpica? Pode?

Desde que não acumule remuneração, sim. Isso tá em avaliação pelo governo, mas acho que meu nome tem a ver com a proximidade que tenho com o Rio. E a APO vai até dezembro.

O senhor era um secretário prestigiado no Rio e hoje há quem o chame de “ministro golpista”. Como lidar?

Isso deriva de um momento de paixões exacerbadas. Acho inadmissível esse rótulo de golpista. Golpista é quem desrespeita a Constituição. E houve um processo legítimo e constitucional. O que me atinge é gente que foi do meu convívio pessoal ser desrespeitosa comigo. O resto faz parte do processo democrático.

Expor sua intimidade no Instagram gera algum desconforto como ministro?

É próprio da nossa geração postar selfies. Meu instagram é meu recanto pessoal. Políticos não são de Marte, têm vida. Boto fotos de avó, afilhados, gatos, minhas em cenas lúdicas.

O Globo

Opinião dos leitores

  1. Conversa mole! No máximo irá gerar um "apagão" no bolso de muita gente, que se acostumou a viver as custas do dinheiro dos pagadores de impostos, via "Lei Roubanet".

    1. Pois é. E é muito estranho que o juiz Sergio Moro e sua equipe da Lava Jato não avançaram muito nas investigações sobre isso não é?!

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